Lívio Soares é, ou está, entre os maiores intelectuais destas terras alterosas. O texto a seguir é primoroso, e mostra como nosso radialista tornou-se um encantador de palavras, fazendo-as falar muito mais do que estão habituadas.
Atire a primeira pedra
Lívio Soares de Medeiros
Integrante do legislativo municipal, durante reunião da câmara municipal, reclamou de objeto de estudo de estudante de mineração. Na opinião do vereador, em vez de questões sociais, a discente deveria ter se detido sobre “trabalhos voltados sobre a classificação do mineral, calcário, sobre não sei o quê”. De cara, diga-se que o estudo de determinado aspecto técnico não impede o estudo de questões sociais. Manifestar o pensamento de que uma questão técnica anula uma questão humanística é típico de quem desconhece o processo de evolução das ciências e das humanidades. O que é técnico e o que não é técnico são faces de uma moeda.
Ainda se referindo ao trabalho da estudante, o político patense declara: “Os trabalhos feitos, na disciplina dela, que é mineração, não faz [sic] sentido. Isso aí tá parecendo mais trabalho de ciências sociais. Ela não vai chegar numa Vale da vida, vai ficar falando de quilombola pro pessoal. Ela vai querer fazer um estudo, análise daquela terra, daquela mineração, pros trabalhos da empresa. Se eu fosse empresário, contrataria nesse sentido”.
O discurso tem cara de nobreza, de quem se importa com o que está sendo estudado, de quem se importa com o futuro da jovem; todavia, é uma falácia. Primeiro, na proposta de que deve haver uma radical separação entre o que é técnico e o que é social; segundo, por postular que se alguém se envolve com um estudo técnico, não caberia a esse alguém refletir sobre a sociedade em que vive. O discurso da autoridade tem cara de preocupação social, quando, na verdade, está propondo ausência de reflexão.
O fato de alguém estudar uma determinada disciplina técnica não impede que esse mesmo alguém reflita sobre a sociedade que está em torno desse conhecimento técnico. A separação da realidade entre aquilo que é técnico e aquilo que não é técnico é errônea ou malévola. Essa separação pressupõe divisão do que somos, pressupõe que a uns cabe análise técnica e a outros cabe, por exemplo, análise sociológica, e ai do que técnico que se aventurar a análises sociológicas, ai do sociólogo que quiser compreender questões da matéria.
Na citação do vereador, a Vale foi mencionada. Qualquer busca rápida na internet revela o quanto a Vale é capaz de destruir. Quem está em Brumadinho sabe disso. Ainda assim, numa realidade em que empresas matam pessoas e biomas, o vereador advoga a favor de técnicos que não pensam sobre a realidade em que vivem, mas que tão somente se dediquem a estudar os aspectos técnicos da profissão que exercem ou que possam vir a exercer.
Para a Vale, só para se ter um exemplo, é ótimo que um técnico não pergunte, não questione. A partir da fala do vereador, conclui-se ser ótimo que, digamos, um eletricista não produza pesquisa sobre as injustiças do mundo e sobre o processo histórico. Se o sujeito lida com mineração, na visão do vereador, não caberia a esse sujeito produzir trabalhos que se debrucem sobre questões sociais; esse sujeito, na visão do político, em vez de tentar entender o mundo em que está, deveria se debruçar unicamente sobre minerais.
O vereador ignora (ou prefere passar a ideia de que ignora) o básico: a pedra se chama pedra porque recebeu do homem esse nome; o mineral se chama mineral porque recebeu do homem esse nome. O conhecimento técnico, seja da mineração seja de qualquer outra área do conhecimento, é intermediado pela humanidade, é realização da humanidade. Os minerais não se classificaram, não se nomearam, não se estudaram; as pedras não se coletaram, não determinaram elas mesmas as suas origens, as suas idades. O ser que atribui nomes e classificações à natureza é o ser humano.
Gente não pode ser decalcada nem retirada da teia histórica de que faz parte. A mesma pessoa que estuda uma pedra é a pessoa que chega em casa, abraça os pais ou se emociona com uma canção. A mesma pessoa que estuda uma pedra é a pessoa que pode se perguntar, em trabalho acadêmico, por que os índios estão sendo mortos ou por que o Brasil está sendo queimado. A mesma pessoa que estuda uma pedra pode responder, em trabalho acadêmico, à maneira dela, o motivo de haver brasileiros que defendem tortura e ditadura.
Para gente como o vereador e para empresas como a Vale, é bom que os que estudam pedras não fiquem se fazendo perguntas demais. “Se você estuda pedras, dedique-se a estudar pedras. Nada de ficar estudando quilombolas. Isso não é de sua alçada”, alegariam. Pensamentos como o do vereador desprezam a natureza eclética do ser humano e a reduzem a algo mecânico, obediente, petrificado. O vereador representa um Brasil que não quer gente pensando, mas, sim, pedras.
Pedras não questionam, não têm múltiplos interesses, não expõem realidades incômodas, não fazem perguntas perturbadoras. Pedras obedecem, estudam o que o outro determina que deve ser estudado. Políticos há que não querem cidadãos, mas pedras que votem neles. Tendo votado, que a pedra continue sendo pedra. Uma pedra não retrucará, não contextualizará, não fará associações, não produzirá arte nem história nem ciência.
Gente não é pedra. Você, que quer viver num conforto em que haja seres estáticos baixando a cabeça, pode espernear. Gente não foi, não é, não será pedra, por mais que você insista. Uma pessoa que reflete sobre si mesma e sobre o mundo em que vive é perigosa porque desestabiliza construções que servem a poucos e banem muitos. Que aquele que queira estudar pedra estude pedra; que aquele que queira estudar questões sociais estude questões sociais. Que aquele que queira estudar pedra e que queira estudar questões sociais estude pedra e questões sociais.
Que a pedra, como metáfora e como material de estudo, seja bem-vinda. Como metáfora, que a firmeza dela sirva de inspiração. Que se tenha firmeza de pedra, delicadeza de brisa, paixão de fogo, paciência de estalagmite. Gente é pedra, vereador; pessoas são pedras; pedras em movimento com asas poderosas, cientes de que “pedras que rolam não criam limo”. Pessoas vão se polindo, lapidando-se, aprendendo, estudando. Ideias impedem que pessoas se tornem lodosas. A má notícia para o vereador é haver pessoas que são pedras pensantes. Quando atiram pedras nessas pessoas, essas pessoas sabem segurar pedras. Em metáfora e em literalidade.
Riala Mafon
28/08/2021 20:15Alguém disse que o estilo é o poder e a liberdade da escolha; e o poeta em questão, escolheu colocar o homem acima da pedra, sem menosprezar o valor do mineral; mas como poeta --- que seu ofício é garimpar palavras, preferiu o valor social do homem. para quem sabe, ter a possibilidade do diálogo, abafando a solidão que procura prevalência.