Chicotadas, torturas, assassinato, tráfico de drogas, ameaças, pessoas marcadas como gado. Os fatos reais parecem cenas de um filme de guerra ou de terror. Mas foram relatados em uma fazenda de café, na região de Aimorés, na divisa entre Minas Gerais e Espírito Santo. No julgamento realizado na 3ª Vara do Trabalho de Governador Valadares, o juiz Walace Heleno Miranda de Alvarenga se deparou com um caso emblemático: os trabalhadores levavam chicotadas como “castigo” e recebiam drogas como “pagamento”. As bebidas alcoólicas e drogas fornecidas eram também vendidas aos trabalhadores dependentes químicos como forma de manter controle sobre eles. Houve relatos de rituais macabros no alojamento, onde foi encontrado um crânio. Nesse cenário, o magistrado condenou dois fazendeiros de Aimorés, por submeterem trabalhadores a condições semelhantes à escravidão.
A decisão foi tomada após uma fiscalização que resgatou sete pessoas em situação degradante. Os réus foram condenados a observar o cumprimento de medidas para garantir condições dignas de trabalho, com aplicação de multa em caso de descumprimento. A condenação inclui também o pagamento de indenização por danos morais coletivos, pela ofensa à sociedade, fixada em R$ 2 milhões. Houve ainda uma condenação ao pagamento de indenização por danos morais individuais para cada um dos trabalhadores resgatados, no valor de R$ 50 mil.
Entenda o caso
O Ministério Público do Trabalho (MPT) ajuizou ação civil pública contra os réus, acusando-os de submeter trabalhadores a condições semelhantes à escravidão em uma fazenda localizada em Aimorés/MG. A denúncia relatou situações graves, como jornadas exaustivas, condições de moradia e trabalho degradantes, vigilância armada e restrições à liberdade dos trabalhadores.
Durante a fiscalização, realizada em janeiro de 2023, uma força-tarefa, formada por auditores-fiscais do trabalho, promotores e policiais, constatou graves irregularidades na fazenda de café.
Ao chegar à fazenda, a equipe foi recebida pelo capataz, que confessou ser o responsável pelos trabalhadores, mas não apresentou contrato formal. Um dos réus estava presente na propriedade, mas fugiu ao perceber a chegada da força-tarefa. Mais tarde, o advogado dele compareceu ao local para negociar as rescisões dos trabalhadores. A força-tarefa resgatou sete trabalhadores em situação de exploração e os registrou como beneficiários de seguro-desemprego. Os réus pagaram as verbas rescisórias durante a operação.
A Polícia Federal continuou as investigações e recolheu evidências que confirmaram o esquema de servidão por dívidas e exploração ilegal de mão de obra. Em junho de 2024, o Ministério Público do Trabalho ajuizou a ação civil pública, com pedidos de indenização por danos morais individuais e coletivos.
Castigo físico e terror psicológico
Ao examinar o conjunto de provas, o magistrado constatou que os trabalhadores viviam em alojamentos sem condições básicas, como ventilação, saneamento e água potável. Relatos apontaram jornadas exaustivas, manuseio de agrotóxicos sem proteção, violência física e controle por meio de dívidas e ameaças.
“Saliento que as fotografias que instruíram os relatórios em apreço demonstram, de forma exaustiva, a real situação degradante à qual os trabalhadores eram submetidos na propriedade dos reclamados, uma vez que se alojavam em locais sem condições mínimas de higiene, segurança e habitabilidade, o que foi constatado de forma flagrante no ato da fiscalização e resgate realizados pela força-tarefa”, pontuou o juiz.
“Não é preciso maior esforço intelectivo para se inferir que tais condições de trabalho verificadas in loco pelos agentes públicos que realizaram a ação fiscal violam severamente os direitos sociais mínimos de qualquer ser humano que faça parte de uma relação de trabalho subordinado, ofendendo a sua dignidade de forma direta”, completou.
De acordo com informações extraídas do relatório policial, existe uma investigação de possível envolvimento do capataz em dois homicídios, inclusive na morte de um trabalhador da fazenda, em 12/1/2023. Conforme a apuração policial, o capataz se ofereceu para levar o trabalhador a uma consulta médica, pois ele estava com o olho machucado. No entanto, após entrar no carro do proprietário da fazenda, na manhã seguinte, o corpo do trabalhador foi encontrado na zona rural de Mutum (MG). Para o juiz, esses fatos demonstram a alta periculosidade do capataz e as inúmeras e graves ações ilícitas que ele realizava em relação aos trabalhadores da propriedade dos réus.
Durante a fiscalização na fazenda, os trabalhadores relataram situações de violência física e rituais conduzidos pelo capataz e sua esposa. Uma das práticas mais perturbadoras envolvia um espaço utilizado para rituais religiosos, onde foi encontrado um crânio. Os trabalhadores afirmaram que o capataz utilizava esse local para realizar cerimônias que incluíam castigos físicos, como chicotadas.
Um dos relatos descreveu que o capataz marcava as costas dos trabalhadores com um símbolo em formato de “Z”, atribuído à entidade "Zé Pelintra", vinculada à religião praticada por ele. Conforme relatos, o capataz teria exibido essas marcas como parte dos rituais, reforçando o clima de medo e submissão entre os empregados.
A equipe da força-tarefa encontrou o crânio no espaço dedicado aos rituais, junto com outros objetos e imagens relacionados às práticas religiosas. Apesar de não se confirmar se o crânio era humano, a descoberta gerou grande impacto durante a fiscalização. Questionados sobre a procedência do objeto, o capataz e sua esposa não forneceram explicações consistentes.
Esses rituais, associados às agressões e humilhações, representaram um agravamento das condições de trabalho, configurando um cenário de terror psicológico e físico para os trabalhadores. A situação reforçou as evidências de que os empregados eram mantidos sob controle rígido e constante ameaça, o que contribuiu para a caracterização do trabalho em condições análogas à escravidão.
Ciclo de dependência econômica e psicológica
Conforme registrado no relatório da força-tarefa, os trabalhadores da fazenda viviam em um ciclo de dependência econômica e psicológica criado pelo capataz e pelos fazendeiros. Eles eram mantidos em condições precárias e submetidos a um sistema de dívidas que os impedia de deixar o local.
Os salários prometidos raramente eram pagos integralmente. Os valores eram constantemente reduzidos por descontos abusivos. Produtos básicos, como botas, sabonetes e papel higiênico, eram vendidos a preços exorbitantes e descontados diretamente dos pagamentos. Além disso, itens como bebidas alcoólicas e drogas também eram fornecidos e cobrados com valores altos, aprofundando ainda mais o endividamento.
Em algumas ocasiões, as drogas eram fornecidas de forma gratuita, como uma espécie de “salário” ou “pagamento” pelos serviços prestados. Em outras ocasiões, a prática era vender as drogas para dependentes químicos, como forma de mantê-los sempre na fazenda. “Chama a atenção, ainda, que alguns trabalhadores informaram ser dependentes químicos, condição que potencializava em demasia o endividamento deles, criando-se uma situação de servidão por dívida”, observou o magistrado.
Ele asseverou que a entrega de bebidas alcoólicas e drogas aos trabalhadores como pagamento pelos serviços prestados é uma prática proibida por lei, nos termos do artigo 458 da CLT.
Em alguns casos, os trabalhadores não recebiam dinheiro em espécie, ficando completamente dependentes de seus empregadores para adquirir qualquer item necessário. Relatos indicaram que, quando pediam adiantamentos, recebiam quantias menores, mas tinham valores muito maiores anotados como dívida. Essas práticas criaram uma situação de servidão por dívida, na qual os trabalhadores não conseguiam quitar os débitos e, consequentemente, permaneciam presos à propriedade.
De acordo com o relatório elaborado pela Polícia Federal, pela análise dos materiais apreendidos nas residências dos réus e do capataz, o juiz destacou a “constatação de registro de dívidas de trabalhadores resgatados na operação com valores superiores aos que eram recebidos pelos serviços por eles realizados”.
A dependência era intensificada pelo uso de violência psicológica e física. Ameaças e castigos impediam os trabalhadores de questionar as condições ou tentar sair da fazenda. A falta de alternativas econômicas combinada com o controle exercido pelos responsáveis, resultou em uma exploração contínua e desumana.
O julgador classificou o caso como típica escravização moderna ou contemporânea. “De fato, o Estado brasileiro aboliu formalmente a escravidão em 1888, com a Lei Áurea, após mais de 300 anos de exploração da mão de obra de pessoas escravizadas. Contudo, ainda existem práticas cotidianas no mundo laboral que aviltam a dignidade humana das pessoas sob a aparente roupagem de uma relação de trabalho”, ponderou.
“Teoria do avestruz” ou “teoria da cegueira deliberada”
Os fazendeiros negaram envolvimento nas irregularidades encontradas na propriedade deles, alegando que o capataz era o único responsável pelas práticas. No entanto, o magistrado concluiu que eles frequentavam a fazenda, tinham conhecimento das condições e se beneficiavam do trabalho. Na visão do julgador, as provas produzidas no processo não confirmam a alegação dos réus de que não tinham conhecimento do que acontecia na fazenda.
Na sentença, o magistrado invocou a aplicação da chamada “teoria da cegueira deliberada”, oriunda do Direito Penal dos Estados Unidos, também conhecida como “teoria do avestruz”. De acordo com essa construção jurídico-científica, que encontra ressonância no Direito Penal brasileiro, “caso o réu possuísse condições de saber se participava de atividade ilícita, mas optou por fechar os olhos à descoberta, seria tão culpável quanto se possuísse o conhecimento pleno”, explicou.
Para reforçar os fundamentos da sentença, o julgador frisou que as provas foram colhidas por autoridades e agentes do Estado, que gozam de fé pública, nos termos dos artigos 19, II, da Constituição, e 405, do Código de Processo Civil. Além disso, os réus tiveram oportunidade para se defenderem e contestarem as provas, mas não conseguiram, no entendimento do magistrado.
“Dessa forma, reputo suficientemente comprovado nos autos que os trabalhadores encontrados na propriedade dos réus estavam em situação de redução à condição análoga a escravidão, por sujeição a trabalho forçado, condições degradantes de trabalho e por restrição de sua locomoção por dívida”, concluiu o magistrado.
Legislação aplicada e fundamentos jurídicos
Na sentença, o juiz explicou que a exploração dos trabalhadores configura violação do artigo 149 do Código Penal, que proíbe a submissão de pessoas a trabalhos forçados, jornadas exaustivas, condições degradantes ou restrição de locomoção devido a dívidas.
Além disso, a Constituição Federal, no artigo 1º, estabelece a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental. O artigo 243, da Constituição, prevê a expropriação de propriedades onde houver exploração de trabalho escravo.
A Instrução Normativa nº 2, de 2021, também define o que caracteriza trabalho em condições análogas à escravidão, como jornada exaustiva, trabalho forçado, condições degradantes e restrição de liberdade. O julgador reiterou que todas essas práticas foram confirmadas no caso, por meio de depoimentos e provas documentais.
Ele reforçou que o Brasil é signatário de tratados internacionais que proíbem o trabalho escravo e garantem condições dignas de trabalho, como as Convenções nº 29 e 105 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Esses compromissos reforçam que práticas como as verificadas no caso são ilegais e inaceitáveis.
No plano nacional, a Constituição, a legislação trabalhista e normas de segurança e saúde no trabalho foram amplamente desrespeitadas. O julgador reafirmou que garantir condições dignas é uma obrigação dos empregadores, independentemente de quem administre diretamente o trabalho.
Condenações
O juiz confirmou a tutela de urgência concedida no processo e julgou procedentes os pedidos iniciais para condenar os réus, solidariamente, ao cumprimento de obrigações de fazer e não fazer, sob pena de multa de mil reais por obrigação descumprida e em relação a cada empregado prejudicado. A tutela de urgência é um mecanismo jurídico previsto no Código de Processo Civil (CPC) que permite ao juiz conceder uma decisão provisória para proteger direitos que correm risco de sofrer danos graves ou irreparáveis enquanto o processo está em andamento.
Caso haja aplicação da multa, o julgador decidiu que ela será revertida para entidade filantrópica da região, ou para instituição pública ou privada, a ser definida depois pelo Ministério Público do Trabalho e pelo juiz, de modo a reverter em favor da comunidade do local onde foram apurados os fatos.
A decisão destacou que a exploração feriu a dignidade dos trabalhadores, um direito garantido pela Constituição. Por isso, os réus devem ser responsabilizados pelo pagamento de indenizações, de acordo com a conclusão do magistrado. Essas indenizações incluem danos morais coletivos pela ofensa à sociedade, fixada em R$ 2 milhões, valor a ser revertido a favor de entidade filantrópica da região, ou para instituição pública ou privada, a ser definida depois pelo Ministério Público do Trabalho em conjunto com o juiz. Houve também uma condenação ao pagamento de indenização por danos morais individuais para cada um dos trabalhadores resgatados, no valor de R$ 50 mil.
Além do pagamento das indenizações, os réus deverão adotar medidas para prevenir novas violações, como a regularização de contratos e melhorias nas condições de trabalho. O entendimento sobre o caso reforça o compromisso da Justiça do Trabalho no combate à exploração de mão de obra e na proteção dos direitos humanos, reafirmando que práticas semelhantes à escravidão são inaceitáveis. Houve recurso e, atualmente, o processo aguarda a data de julgamento no TRT-MG.
Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo - 28 de Janeiro
No dia 28 de janeiro, o Brasil celebra o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, uma data dedicada a conscientizar a sociedade sobre a luta contra essa grave violação dos direitos humanos. A data foi escolhida em homenagem aos auditores-fiscais do trabalho Erastóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva, além do motorista Ailton Pereira de Oliveira, assassinados em 2004 durante uma fiscalização em Unaí, Minas Gerais, no caso que ficou conhecido como a "Chacina de Unaí".
O trabalho escravo moderno atinge milhares de pessoas no Brasil e no mundo. Ele se manifesta em práticas como jornadas exaustivas, condições degradantes, servidão por dívida e restrições à liberdade. Esses abusos ferem a dignidade humana e desrespeitam direitos fundamentais previstos na Constituição Federal e em tratados internacionais.
A erradicação do trabalho escravo é um compromisso firmado pelo Brasil em acordos globais, como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, que incluem o combate à escravidão moderna até 2030. No âmbito interno, diversas iniciativas de fiscalização, resgate de trabalhadores e conscientização são promovidas pelo governo, pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e por organizações da sociedade civil.
A data reforça a importância da vigilância da sociedade e do poder público para garantir condições dignas de trabalho. Denúncias de trabalho escravo podem ser feitas de forma anônima ao Ministério Público do Trabalho, ao Ministério do Trabalho e Emprego ou à Polícia Federal, ajudando a combater essa prática que ainda persiste em diversas regiões do país.
O Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo é um chamado para refletir sobre a responsabilidade de todos na construção de uma sociedade mais justa e igualitária, onde o respeito aos direitos humanos seja uma realidade para todos os trabalhadores.
Fonte: TRT/MG
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