Está em todos os jornais. A população de Patos de Minas está em choque diante dos recentes casos de assassinato de mulheres na cidade e na região. Muitas destas mortes são caracterizadas como feminicídio, o que significa terem ocorrido principalmente porque a vítima era uma mulher. É o que acontece, por exemplo, quando um ex-companheiro mata a mulher por não aceitar o término de um relacionamento.
Apesar do choque, crimes do gênero não são novidade. Apenas no primeiro semestre de 2022, foram registrados 31.398 casos de violência contra a mulher em todo o Brasil. Mas eu não confio neste dado e vou explicar o motivo.
Estamos em uma cultura que normaliza a violência, de diversas maneiras. Desde cedo, as muitas mulheres passam por experiências em que assistem homens xingando, gritando, chegando bêbados em casa, ameaçando, forçando o beijo, forçando o sexo, forçando contato físico (“passando a mão”), traindo, fazendo comentários de desqualificação, reclamando das roupas que usam, reclamando das amigas delas, dando empurrão, dando tapa, dando soco, segurando fisicamente, dizendo que são loucas etc. A exposição contínua a estas situações de violência, sem que ninguém rechace ou interrompa as agressões, faz com que a mulher se habitue a elas e passe a considerá-las “normais”. Algo como: “vi isso a vida inteira, então, não há como ser diferente”.
Obviamente, há como ser diferente sim!
O mito de que “não há como ser diferente” é, em partes, fortalecido pelo que chamamos na Psicologia de Viés de Disponibilidade. Esse é o nome que damos à tendência de nossa mente construir percepções sobre como o mundo funciona levando em consideração apenas aquilo o que vemos, ouvimos e sentimos diretamente. Essa tendência ignora o que acontece fora do alcance de nossos cinco sentidos (visão, audição, tato, olfato e paladar). Por exemplo, uma pessoa que vê comportamentos como os listados acima acontecendo diariamente entre os membros de sua família e vizinhança, tende a ignorar que existem outras famílias e vizinhanças em que estas atitudes não acontecem e, se acontecessem, seriam imediatamente rechaçadas.
Esse viés não é um problema por si só. Ele é necessário. Seria inviável para nossa mente lidar com informações sobre tudo o que acontece no mundo ao mesmo tempo. A saída para isso é lidar com as informações de nosso ambiente imediato. Essa característica só se torna um problema quando as informações sobre o que acontece fora do alcance de nossos olhos são relevantes para lidarmos com o que está a nosso alcance. Por exemplo, saber que existem famílias e vizinhanças que não admitem comportamentos violentos como os listados pode aumentar a capacidade da vítima reconhecer o quão problemáticos são.
Falas aparentemente inofensivas podem piorar o problema
Nossa cultura normaliza o problema, também, através do que é falado pelas pessoas. Frases como “isso é coisa de homem”, “homem é assim mesmo”, “você precisa entender que ele estava estressado”, “o que você fez que o provocou?”, “ele já sofreu muito na vida, por isso age dessa forma”, “ele vai mudar”, “ele coloca dinheiro em casa”, “mas ele é um bom pai” e outras que incentivem “deixar passar” acabam aprisionando a vítima na relação abusiva. Elas podem, inclusive, adicionar uma camada a mais de sofrimento ao culpabilizar a vítima – por exemplo, quando alguém faz a infame pergunta “mas o que você fez pra ele agir assim?”.
Esse tipo de frase precisa ser cortada de nosso vocabulário. Elas comunicam à vítima de violência que (1) ela “precisa relevar” a agressão ou que (2) ela pode ser a culpada. A consequência disso é que, mesmo quando a vítima percebe a agressão, ela é incentivada a tolerar. Trocando em miúdos, a mulher que ouve frases como estas não encontra apoio para sair da relação abusiva. Ao invés disso, é incentivada a aguentar o abuso.
O relacionamento melhorou? Cuidado! Isso pode ser uma armadilha
A tentativa de “deixar passar” e a expectativa de que haverá mudança também são alimentadas pelas “fases menos piores” ou “fases boas” do relacionamento. Essas fases normalmente acontecem após um episódio de agressão. O parceiro violento promete mudança, age de maneira carinhosa ou menos agressiva, parece fazer de tudo pela relação. Mas essa “bonança” é apenas uma armadilha. É como se fosse a isca de uma arapuca: alimenta a esperança de que as coisas vão melhorar (para “atrair” a mulher para dentro da relação) e, quando a mulher “relaxa”, a agressão recomeça gradualmente.
Na verdade, eu vejo a “boa fase” da relação como a mais problemática. Se a relação fosse só violência, dificilmente a mulher permaneceria nela. A boa fase alimenta a crença de que ele vai mudar ou de que ele é um "bom homem”. Essas crenças aprisionam.
Essa crença também é alimentada pela imagem que o agressor normalmente tem fora de casa. Muitos dos agressores são gentis com pessoas de fora, como amigos, familiares e colegas de trabalho. A maioria deles trabalha, coloca dinheiro em casa, faz coisas que o fazem parecer “um cara do bem” aos olhos de quem não está sofrendo a agressão. E estas pessoas, claro, correm o risco de dizer à vítima que “ele não seria capaz de ser tão agressivo”. E a vítima, mais uma vez, se percebe sozinha.
É preciso entender que "pequenas violências" também são violência e podem ser o começo de um processo que culminará em morte. É preciso colocar limites desde o começo, antes que seja tarde.
É importante entender que o primeiro passo para combater a violência contra a mulher é reconhecê-la, desde o começo, quando ainda é mais sutil. Casos como os que chocaram a cidade são extremos. Para chegar a estes extremos, o agressor “evolui” ao longo dos anos, ao longo dos vários relacionamentos pelos quais passa – inclusive, na casa de sua família de origem. Atos de agressão “menores” vão sendo normalizados e tolerados.
A sequência de experiências em que o agressor “pode” agir agressivamente fazem com que ele se sinta mais seguro para continuar agindo assim. Essa segurança também abre espaço para atos “apenas um pouco mais agressivos” do que os anteriores, que se forem tolerados, se somam ao repertório violento já acumulado. Nesse processo, o agressor refina gradualmente sua capacidade de ser violento até que encontre um limite consistente. Quando não encontram, ou se o encontram "tarde demais", um assassinato se torna provável.
É preciso colocar limites desde o começo!
Apenas uma minoria chega a cometer assassinato. Fatores temperamentais e de personalidade do agressor podem favorecer para que o processo seja mais lento ou mais rápido, para que ele “teste” mais ou menos os limites ou para que ele se importe mais ou menos com o que a vítima sente. Mas esse é um assunto para outro texto.
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Esequias Caetano é Psicólogo (CRP 04/ 35023), especialista em Psicologia Clínica (ITCR/ Campinas, SP) e Neurociências e Comportamento (PUCRS/ Porto Alegre, RS). Fala sobre ciência, comportamento e cultura. Instagram: @ecaetano.pbe