Se você tem se sentido perdido ou perdida em meio a tantas informações sobre COVID-19, novas variantes e vacinas, saiba que esta parece ser a sensação experimentada pela maioria dos patenses e, quem sabe, pela maioria dos brasileiros. Neste cafezinho virtual sobre ciência com o Dr. Gabriel Fernandes, pesquisador em saúde pública do Instituto René Rachou – Fiocruz Minas e doutor em em Bioinformática pela UFMG, com período sanduíche no Laboratório Europeu de Biologia Molecular – EMBL em Heidelberg na Alemanha, procurei abordar algumas das perguntas que mais frequentemente vejo sendo feitas a respeito da situação atual. O entrevistado também é professor visitante da Universidade de Copenhagen (Dinamarca) e orientador dos programas de pós graduação de Genética e Bioinformática da UFMG, Genética e Biologia Molecular da UFG, Ciências da Saúde da Fiocruz, e Medicina da USP. Em suas respostas às questões apresentadas, reúne informações valiosas que merecem ser compartilhadas.
Esequias: Olá, Gabriel. Muito obrigado por aceitar o convite. Diante da enxurrada de informações sobre COVID-19 que tem circulado por aí, muitas pessoas tem se sentido bastante confusas em relação ao que é fato e ao que é boato e, claro, sobre como agir daqui para frente. Vamos começar do básico. O que já se sabe sobre como os vírus saltam de animais para humanos?
Gabriel: Os vírus têm um processo evolutivo muito rápido. A cada ciclo de replicação são geradas mutações que podem alterar a estrutura e/ou função de algumas proteínas virais. Quando há sobreposição de nicho ecológico dos humanos com os dos animais há a possibilidade de um vírus entrar em contato com o organismo humano, caso haja uma mutação que faz com que o vírus reconheça as células humanas como alvo teremos uma possível infecção. Esse contato prolongado pela sobreposição de nichos acaba facilitando o processo de seleção de variantes capazes de reconhecer células humanas. Isso pode acontecer desde o contato através da pecuária – como casos de gripe suína e aviária – ou com animais selvagens em mercados – como o de Wuhan – ou até mesmo pela expansão desordenada das áreas urbanas.
Esequias: Muita gente tem se questionado se, diante das novas variantes da COVID-19, as vacinas perderam efetividade. O que já se sabe a respeito?
Gabriel: Os testes sobre eficácia contra variantes ainda estão sendo feitos. A Pfizer e a Coronavac reportaram que as vacinas continuam eficazes. Por mais que a variante mude a região para a qual a vacina foi desenhada – proteína spike do vírus – e isso diminua a afinidade dos anticorpos pela proteína, ainda há a resposta imunológica celular que é a principal forma de nosso corpo combater infecções virais e de outros parasitas intracelulares. A resposta celular não depende dessa alta afinidade entre antígeno e anticorpo, então ela deve permanecer eficaz ainda contra essas variantes que estão circulando. Considerando que a eficácia da vacina conta com uma combinação de resposta humoral – anticorpos – e celular, a perda de afinidade pelo antígeno deve diminuir a eficácia geral da vacina, mas não a ponto de torna-la ineficaz.
Esequias: No Brasil, diversos profissionais da saúde tem defendido o uso de medicamentos como Ivermectina, Cloroquina e Hidroxicloroquina para prevenir ou tratar COVID. O que já se sabe sobre o uso destes medicamentos para a COVID-19?
Gabriel: É importante explicar que, para testar eficácia de medicamentos, a ciência parte de uma hipótese nula. Essa hipótese nula diz que nada funciona. Então, inicialmente, hidroxicloroquina, ivermectina, dexametasona, nada funciona até que façam experimentos que concluam o contrário, e rejeitem a hipótese nula. No caso da dexametasona, os experimentos foram capazes de rejeitar a hipótese nula, ou seja, a dexametasona tem efeito em circunstâncias específicas para os quais os experimentos foram elaborados: reduzir mortalidade em pacientes graves. No caso da ivermectina e hidroxicloroquina, os experimentos feitos até hoje não foram conclusivos, então não são capazes de rejeitar essa hipótese inicial de que elas não funcionam. Então é importante ressaltar que isso não quer dizer que os medicamentos não são eficazes, mas sim que até hoje não há trabalhos conclusivos que atestem sua eficácia.
Quanto a um consenso de “funciona ou não funciona”, é difícil “bater o martelo” até que todos os experimentos que explorem todas as condições sejam feitos. A ciência é dinâmica, então o que podemos oferecer é uma observação até este momento, e que diz que ainda não há eficácia comprovada para esses medicamentos. A hipótese nula continua.
Esequias: Quais características da doença podem criar a ilusão de que estes medicamentos estão funcionando e de que forma isso acontece?
Gabriel: É importante lembrar de algumas características que fazem com vírus como o SARS-Cov-2 tenha “sucesso evolutivo” e possa se espalhar muito: baixa mortalidade e baixa morbidade. O que isso quer dizer? Se um vírus incapacita o seu hospedeiro, ele não circula e consequentemente espalha menos. O SARS-Cov-2 teve sucesso por causar muitas infecções silenciosas, ou com sintomas leves, que fazem com que os hospedeiros continuem circulando e espalhando o vírus, e esses são a imensa maioria. Os dados mostram quem 80% das infecções são leves ou assintomáticas, ou sejam, podem até passar despercebidas sem necessitar de nenhuma intervenção medicamentos. 15% levam a quadros graves como os febre alta e constante, e/ou necessidade de suplementação de oxigênio, esses precisarão de cuidados médicos. Somente 5% evoluem para quadros críticos que podem causar a morte. Ou seja, 80% das pessoas tendem a se curar sem nenhum problema, então ao fazerem alguma intervenção – seja medicamentosa, simpatia, benzer, rezar, alimentar - e não sentirem nada, essas pessoas tendem a acreditar que a intervenção que os protegeu de um quadro mais grave. Essa ilusão terapêutica é comum em casos em que um determinado desfecho acontece em frequência baixa. Os testes clínicos servem justamente para testar se uma intervenção altera o desfecho quando comparado ao acaso – placebo.
Em um estudo recente publicado na JAMA, mostrou que 200 pessoas com quadro leve de Covid-19 foram tratadas com ivermectina, e 198 com placebo. Houve uma morte entre as pessoas que usaram placebo, e nenhuma nos tratados com ivermectina. Isso mostra o quanto o evento “morte” é raro, e faz com que essa “eficácia” do medicamento esteja na mesma proporção que o acaso. Para sabermos se realmente há diferença, é preciso uma amostra muito maior que leve a mais observações desse desfecho, e assim possamos ver se de fato há diferença entre a intervenção e o acaso. Poucas observações levam a essa ilusão terapêutica.