Dia da empregada doméstica: elas protestam também com poesia
Na internet ou no caderninho, arte rima com consciência
No caderno de Isaura, cabe o mundo. Lá estão as casas em que trabalhou, os caminhos de fuga, os sonhos desfeitos, as esperanças empilhadas, os cômodos desarrumados, as letras que se arrumaram, junto com a vida. De todos os espaços a serem limpos, se encantou mesmo, em uma das casas em que trabalhou, por um dos espaços, o da biblioteca. Lá descobriu, ao folhear os livros, que ela também, empregada doméstica, poderia expressar as angústias. A cuiabana Isaura Benevides, hoje aos 40 anos de idade, moradora de Goiânia (GO), não pára de escrever.
Há mais de uma década, os textos passaram a correr fácil, em versos ou algo assim. “Eu nem sei o que é isso, se poesia ou outra coisa qualquer. Não tenho estudo para explicar o que faço. Tenho vontade e escrevo”. Tanta vontade que, “nos últimos anos”, já lotou de textos um caderno de 80 páginas. Os versos ainda não vão para as redes sociais. Gosta mesmo de ler para as colegas de trabalho. “Elas gostam. Como viram que eu gosto de escrever sobre nossa vida de empregada, elas me procuram para saber dos nossos direitos”. Empoderada pelas palavras, não aceita que patrões venham dizer que ela é tratada como “se fosse da família”.
Essa história começou na infância, quando morava com a família na área rural de Cuiabá. Acompanhava a mãe nas faxinas e ajudava a cuidar das crianças das casas. Era difícil tempo para estudar. Em busca de oportunidades, a família foi morar em Campinas. Casou na adolescência. Com 20 anos, já tinha três filhos. “A minha infância e adolescência foi de babá, diarista, limpar, lavar”. No interior paulista, viu-se em um pesadelo de marido agressor. Fugiu com as crianças e refez a vida. Mas sem deixar o serviço doméstico.
Quando descobriu que poderia escrever, em uma das casas, trancava-se no banheiro para escrever livremente. Uma das patroas jogou tudo fora quando viu aquelas palavras de protesto. Teve que encher outros cadernos. “Não sou uma Clarice Lispector, nem Carlos. Eu sou uma Isaura. Eu escrevo errado e é dessa maneira que vou escrever. Um dia pretendo aprender melhor…estudar, escrever um livro”. Na relação de livros que recebe de amigos e de antigas patroas, tem de tudo e lê de tudo: romance, ação e poesia. “Gosto de história”.
Nos textos, estão os desabafos contra a sociedade racista e elitista. “Coloco quando as patroas me ofenderam. Mas também gosto muito de conto de fadas - o meu preferido é Alice no País das Maravilhas - e de tudo o que a personagem passa”. Tem as próprias histórias e das colegas: os rigores com os talheres na mesa, com a comida que não podem comer, com o banheiro que não podem usar. Hoje, garante que a patroa a estimula a escrever. Nas palavras, os direitos. “No parquinho do condomínio, outras empregadas me procuram para saber mais do mundo”.
Evolução
Os direitos e a proteção cresceram há dez anos com a aprovação da PEC das Domésticas, em abril de 2013, que foi regulamentada em junho de 2015. “A empregada passou a ter fundo de garantia, auxílio desemprego, hora extra, salário família. São quase todos os direitos, com exceção do abono do PIS (benefício anual para trabalhadores que recebem em média até dois salários mínimos de remuneração mensal de empregadores contribuintes do PIS ou do Pasep)”, afirma o presidente do Instituto Doméstica Legal, Mário Avelino. A organização não governamental atua com campanhas para melhorar as condições de trabalho da categoria.
Avelino entende que o avanço das leis não tem relação com a queda de vagas de empregadas domésticas com registro em carteira. A proteção não é a vilã da história. “Estima-se 1,5 milhão de domésticos com carteira assinada. E mais de 6 milhões de trabalhadoras na informalidade”. Para ele, trata-se de uma atividade ocupada em mais de 93% por mulheres, e em mais de 70% por pessoas negras.
Segundo Avelino, o problema tem mais relação com a conjuntura econômica e as dificuldades pelas quais passam os empregadores, como as famílias de classe média. Problemas que se agravaram nos tempos de pandemia. Com o fim dos piores dias da covid-19, Avelino entende que a sociedade e os governos devem ajudar no esclarecimento de quem trabalha no serviço doméstico e dos empregadores sobre a segurança que representa a proteção social.
Avelino defende que abusos e assédios sejam denunciados nas delegacias regionais do Trabalho diante das “demonstrações diárias de uma sociedade ainda com olhar escravocrata”. “Acho muito importante que as trabalhadoras se manifestem. A poesia, como você citou, é um caminho para o qual bato palmas”.
Sobre a data, Dia da Empregada Doméstica, nesta quinta (27), ele entende que torna-se importante para garantir visibilidade a uma categoria que não tem prioridade na estrutura social dos direitos das profissões.
Arte que rima
Quem passou a se acostumar com as palmas foi a ex-empregada doméstica Joyce Fernandes, de 37 anos, que atende pelo nome artístico de “Preta Rara”. Ela atuou por sete anos nesse tipo de serviço na cidade de Santos (SP), onde nasceu. Descobriu a poesia enquanto trabalhava. Hoje, a escritora e rapper denuncia que o quartinho da empregada é a moderna senzala.
“Esse é um trabalho que deveria ser como qualquer outro. Porém, aqui no Brasil nem é respeitado. As relações não são humanizadas. Com a pandemia, muitas trabalhadoras domésticas acabaram virando diaristas”. A poetisa vê que esse tipo de trabalho é enraizado no período colonial. “Na pandemia, foram descobertos diversos casos de trabalho análogo à escravidão. Não dá mais para a gente chamar de análogo, né?”.
Quando Preta Rara começou a escrever versos e até músicas, há mais de 15 anos, a ideia era sensibilizar quem passava a mesma situação que ela. “Eu escrevia coisas que pensava e questões reais, e isso fez com que as pessoas se identificassem com o que eu estava passando”.
Além das letras, Preta Rara criou páginas em redes sociais “Eu, empregada doméstica”, para receber denúncias de abusos. Os relatos deram origem também a um livro com o mesmo nome. “Quando criei a página, eu estava acostumada a ouvir histórias de jornadas muito duras. A maioria dos lugares não tem uma relação humanizada”. O inconformismo diante dos abusos saiu do silêncio e virou poesia. A arte que ela encontrou faz lembrar o passado ainda tão presente. Escreveu há mais de dez anos. “Se fosse por opção, tudo bem/ Tenho várias amigas/ Que já se conformaram/ Mas, eu não!”
Fonte: Agência Brasil